Durante os dois mandatos do Governo Lula o termo Modicidade Tarifária foi propagado para a sociedade brasileira com freqüência, porém nem sempre de maneira correta ou ainda verdadeira.
Todo governo deve prover a seus cidadãos acesso a serviços públicos de qualidade a preços comedidos. Por serviço público entende-se aquele que a Administração Pública presta à comunidade porque reconhece-se como essencial para seus cidadãos. Cabem nesta definição educação, saúde, energia, saneamento, transporte, segurança, etc...
A constituição de 88 vai mais além: ela imputa ao Estado a obrigação de desempenhar certas atividades essenciais, deixando de depender apenas do mercado para atender a essas necessidades básicas. Mas isto não significa que o Estado deva ser o gestor destes serviços, mas sim o indutor do investimento, criando condições para o que a iniciativa privada aloque capital e faça a gestão do serviço da maneira mais eficiente possível.
É neste contexto que foram criadas as agências reguladoras: o Estado cumpre o papel de fomentador do desenvolvimento criando e acompanhando normas parâmetros mínimos de qualidade, enquanto os investidores privados correm os riscos e se eventualmente se beneficiam de uma gestão bem sucedida.
É público e notório que o Governo Lula foi marcado por uma presença mais incisiva do Estado na economia. Este aumento se deu tanto pela via direta, através do aumento no número de servidores públicos (concursados ou não) e criação e fortalecimento de estatais (EPE, capitalização da Petrobras), mas também de forma indireta e pouco discutida com a sociedade: a participação fundos de pensão, do BNDES e de estatais nas licitações dos últimos anos.
Tomemos como exemplo o Leilão da Usina de Belo Monte, ocorrido no primeiro semestre de 2010.
Belo Monte é um projeto antigo, cercado por diversos problemas técnicos. Considerada a terceira maior hidroelétrica do mundo em potência instalada (11.233 MW, atrás apenas de Três Gargantas, na China e Itaipú), Belo Monte tem uma eficiência muito menor que seus pares. Isto se deve pelo fato da usina ser concebida utilizando o modelo de fio d´água, e não através da criação de um grande reservatório. Por não contar com um mecanismo de armazenamento de água, a usina será amplamente dependente do regime de chuvas, fazendo com que sua energia assegurada média seja de apenas 39% da potência instalada (4.419 MW).
Durante as discussões do projeto, o termo Modicidade Tarifária foi amplamente utilizado. O Governo, visando garantir uma tarifa baixa para a população, insistiu em manter o preço teto do leilão em um patamar considerado por muitos como insustentável para garantir uma rentabilidade mínima ao investimento.
O Governo não cedeu aos apelos dos investidores, e manteve a tarifa teto em R$ 83 o MWh. No entanto, aumentou o percentual financiado (com juros subsidiados) pelo BNDES de 70% para 85%. Como o projeto ainda não se sustentava, o governo concedeu outra benesse: a redução de 75% do Imposto de Renda ao consórcio participante. Não foi suficiente: investidores de peso como Camargo Correa, Odebrecht, Alcoa, CSN e Gerdau desistiram de participar do leilão.
O resultado todos sabem. Às vésperas do leilão o governo correu para formar um novo consórcio, liderado pela Estatal Chesf, com 49,98% de participação. Este consórcio foi vencedor, oferecendo um deságio de 6% sobre a tarifa teto. A composição de capital estatal do consórcio, considerando a participação de dívida, é de aproximadamente 93%.
Vamos analisar este resultado: em prol da Modicidade Tarifária o governo afugenta investidores tradicionais e toca em frente um projeto polêmico com auxilio de suas estatais, mesmo que para isso tenha que dar uma série de subsídios e benefícios fiscais. Ora, sobre quem arcará o custo destes benefícios senão o contribuinte brasileiro? Em resumo, trocou-se uma tarifa mais elevada (e realista) a ser paga pelos consumidores diretos de energia (em sua maioria, grandes empresas) por uma tarifa mais baixa, com a diferença rateada por todos. Afinal, independente da forma de custeio, o custo de construção da usina não se altera!
Ou seja, a conta vai ser paga de uma forma ou de outra, independente da falácia da Modicidade Tarifária. Caso o leitor não esteja convencido, podemos voltar a um tema recorrente, que é a carga fiscal brasileira. Tomando novamente o setor elétrico como exemplo, estudo da ABRADEE mostra que tributos e encargos correspondem a 38,6% da conta de luz no Brasil, comparado a 6% no Reino Unido e 5% em Portugal.
O Governo Lula ou a sua provável sucessora estão prestes a reviver a história de Belo Monte, agora na forma do Trem Bala. O projeto, orçado pelo governo em R$ 33 bilhões, contempla desafios como um trecho de serra, inédito no mundo em trens de alta velocidade. Novamente o Governo insiste que os custos para a implantação de um projeto questionável são inferiores aos estimados por investidores, e não aceita discutir a tarifa teto, fixada em R$ 200.
Desta vez contamos com o agravante do Governo ainda superestimar a demanda pelo serviço, de forma a justificar o projeto. As tabelas abaixo foram copiadas do site tavbrasil.com.br, site oficial do governo.
Matriz de transporte de passageiros em 2008, sem o TAV (em milhares de passageiros/ano)
Matriz de transporte de passageiros simulada para 2008, com TAV (em milhares de passageiros/ano)
Note que o governo, para justificar a viabilidade do projeto, estima que o TAV irá atrair 53% do tráfego total entre as regiões abrangidas. Mais improvável ainda, a estimativa contempla que 49% do trafego regional realizado hoje por automóveis será substituído pelo TAV. Ora, este tráfego compõe-se primordialmente de deslocamentos entre as cidades do Vale do Paraíba, com um trajeto médio inferior a 100 quilômetros. Não é razoável pensar que neste caso metade dos passageiros opte pelo trem em detrimento à praticidade do carro.
E de fato os investidores também não o acham. Recentemente a China Communications Construction, estatal chinesa, desistiu de participar do Trem Bala brasileiro.
Será interessante acompanhar o desenvolvimento de mais este mega-projeto. Esperamos que o custo real do projeto seja claramente exposto para a sociedade e não mascarado através de subsídios, benefícios e projeções fantasiosas. A real modicidade tarifária pressupõe transparência!